Púrpura trombocitopénica trombótica (PTT)



Isabel Paulos Mesquita, Interna da Formação Específica em Hematologia Clínica – Hospital de Santa Maria, Lisboa

O que é a Púrpura trombocitopénica trombótica (PTT)?

A PTT resulta de um défice da enzima ADAMTS13, que regula a ligação das plaquetas aos vasos sanguíneos. Havendo níveis baixos ou inexistência desta enzima, as plaquetas vão se agregar e formar pequenos trombos dentro dos vasos, impedindo que o sangue circule corretamente até aos vários órgãos. O défice desta enzima pode ser congénito, se houver uma mutação no gene da ADAMTS13 que impede a produção da enzima e a doença manifestar-se ainda na infância ou mais raramente no início da idade adulta. Mais frequentemente, o défice é adquirido, surgindo mais tarde e geralmente devendo-se à presença de anticorpos que o corpo produz contra esta enzima (processo autoimune). O fator desencadeante para o aparecimento da PTT nem sempre é identificado, mas sabe-se que pode surgir no contexto de doenças autoimunes (como o Lúpus Eritematoso Sistémico), infeções, medicamentos novos, doenças oncológicas, gravidez, entre outros. A PTT é uma doença rara, que afeta anualmente cerca de 6 pessoas em cada milhão de habitantes na sua forma adquirida (PPTa), sendo a forma congénita ainda mais rara. A sua prevalência em Portugal não está totalmente estudada. Afeta sobretudo adultos jovens, do sexo feminino, e tem um impacto importante na qualidade de vida dos doentes.

Quais são as manifestações da PTTa?

Nas análises de um doente com PTT, o que chama logo à atenção são os níveis muito baixos de plaquetas, ou trombocitopenia (que vão ser usadas para formar os trombos) e anemia (porque os glóbulos vermelhos vão ser destruídos ao tentar passar pelos trombos). A trombocitopenia pode causar hemorragias e/ou manchas de dimensões variadas espalhadas pelo corpo (petéquias, equimoses, hematomas). A anemia pode-se traduzir por cansaço, sonolência e palidez. Como o sangue não chega corretamente aos vários órgãos, podem surgir sintomas muito variados e pouco específicos, chamando a atenção para os sintomas neurológicos (como confusão, dores de cabeça, dificuldade em falar ou em mexer certas partes do corpo, alterações na sensibilidade da face ou dos membros, convulsões ou até mesmo coma) e abdominais (como dor, diarreia, náuseas, vómitos). Outro sintoma que pode surgir é febre. Esta doença é muito imprevisível e, de um momento para o outro, podem surgir alterações mais graves, potencialmente fatais se o diagnóstico não for feito e não se começar logo tratamento.

Como é feito o diagnóstico de PTTa?

Devemos suspeitar de PTTa quando se deteta anemia e a trombocitopenia nas análises, associadas aos sintomas já mencionados. No entanto, o diagnóstico nem sempre é fácil porque pode haver várias doenças a dar alterações semelhantes, e porque estas alterações nem sempre surgem em simultâneo. A confirmação da PPTa é feita por uma análise que permite medir os níveis e atividade da enzima ADAMTS13 e ver se há ou não anticorpos contra ela, mas que infelizmente ainda não está disponível na maioria dos hospitais do país. Sendo a PTTa uma doença rara, muitas vezes não é a primeira opção de diagnóstica e isto pode ter graves implicações, porque a mortalidade sem tratamento é muito alta e, mesmo com o tratamento instituído, por vezes a doença pode progredir de tal forma que é preciso internamento em unidade de cuidados intensivos, e surgirem lesões irreversíveis ou mesmo fatais.

Qual o tratamento da PTTa?

O tratamento da PTTa implica internamento para fazer plasmaférese, que funciona como uma filtragem do sangue. O plasma do doente (uma das partes do sangue, onde estão os anticorpos e onde devia haver a enzima ADAMTS13) vai ser removido de circulação e é substituído por plasma novo com a enzima que estava em falta e sem os anticorpos. Este tratamento é feito diariamente até haver normalização dos valores das plaquetas e o doente já não ter sintomas. Para além da plasmaférese, o doente também começa a fazer corticoides, que são imunossupressores, ou seja, vão inibir o sistema imunitário e impedir que haja formação de novos anticorpos. No entanto, se isto não for suficiente, pode ser necessário fazer outro tipo de imunossupressão mais forte. Outro medicamento que surgiu mais recentemente é o Caplacizumab que, explicando de uma forma simples, vai impedir que as plaquetas se agreguem em trombos. Assim, consegue-se ganhar algum tempo enquanto os outros tratamentos fazem o seu papel. Estes tratamentos acabam por se complementar uns aos outros e nunca devem ser feitos separadamente. Quando já não há trombocitopenia, e avaliando caso a caso, é possível suspender a plasmaférese e o doente ter alta, continuando o seguimento e tratamentos em ambulatório. Paralelamente ao tratamento, é preciso fazer exames para investigar qual foi o fator desencadeante da doença, apesar de muitas vezes não se conseguir identificar nenhum.

Como vive um doente com PTTa?

Depois do doente sair do episódio agudo, é preciso manter tratamento com imunossupressores durante algum tempo e só se vai reduzindo a dose conforme os resultados das análises. Dependendo da gravidade das manifestações que o doente apresentou, pode haver sequelas e ser mais difícil recuperar a atividade normal, quer física quer psicologicamente. No entanto, é importante relembrar que, assim que seja possível, o doente pode (e deve!) voltar à sua vida normal. O doente irá manter seguimento médico por tempo indeterminado porque, infelizmente, há sempre risco de recaída da doença, havendo doentes que têm recaídas mais frequentes e doentes que podem nunca recair. Por isso, muitas pessoas vivem o seu dia-a-dia com insegurança e receio que volte a haver um episódio agudo da doença.

TESTEMUNHO DE DOENTE – “Descobrir a sigla PTTa”, Filipa Afoito

Em junho de 2019 andava bastante ansiosa e nervosa e comecei a sentir arritmias. Fiz análises e exames e fui diagnosticada com hipertensão arterial e devidamente medicada. Dia 8 de janeiro de 2020, comecei a ficar com a mão e a boca dormentes, dificuldade em falar e cerca de 20 minutos sem conseguir ver mais que uma luz branca. Mais uma ida ao hospital e outra bateria de análises e exames, agora para despiste de esclerose múltipla, que acabou por ser descartada. Cada vez mais cansada, ficava esgotada ao subir escadas. No dia 11 de janeiro (Dia D), verifiquei que tinha as pernas negras e fui novamente para o hospital. Tinha as plaquetas e os glóbulos vermelhos com níveis tão baixos que a indicação foi de internamento. Se por umas vezes não dizia coisa com coisa, outras era bastante coerente. Um dia, estava a falar com o meu marido, comecei a ficar tonta, e desmaiei. Pelo que sei, tive convulsões e acabei por ser internada na UCI. O mês seguinte só existe na minha memória pelo que me contaram depois. Muitos dias na UCI e refratária à maioria dos tratamentos. Coma induzido e muitas incertezas relativamente ao prognóstico. Depois das várias abordagens terapêuticas, graças à medicação nova, à fantástica equipa clínica (todos os profissionais de saúde), à minha família que nunca que me deixou só, a todos que rezaram por mim em todo o mundo, a Deus que ouviu, e muito honestamente, graças a mim também, finalmente “dei a volta”. Tenho dois filhos maravilhosos que nunca me saíram da cabeça quando estive acordada, e de certeza que também lá estavam quando “dormia”. Tive alta a 11 de março (2 meses depois). O período imediatamente após a alta foi muito duro e tive de reaprender muito (até como andar). Esses problemas foram ultrapassados e ficou a epilepsia e a consequente medicação. Sou acompanhada com regularidade no Hospital de Santa Maria.

Não consigo olhar para trás e ver tudo o que aconteceu como algo negativo (exceto o sofrimento da minha família e, em especial, a provação que a minha filha passou). A capacidade que o meu cérebro tem de eliminar as más memórias, é proporcional à extraordinária capacidade que o meu corpo teve para ultrapassar tudo e recuperar em tempo recorde. Sei que a PTTa vive comigo, mas na minha cabeça não voltará, e, se voltar, já há experiência e solução (rezo eu). A minha memória já não era boa e depois do que aconteceu ficou bem pior. Passado um ano, fico sempre na dúvida se posso fazer isto ou aquilo, mas uma coisa sei, tenho que aproveitar ao máximo esta vida que pode ir embora com a mesma velocidade que com que veio.

  • Artigo publicado no Boletim Hemofilia nº 170