APH
Desporto
As pessoas com hemofilia tal como qualquer indivíduo têm necessidade de se movimentar e de se sentir bem.
— Introdução
A modernização da sociedade tem reduzido as atividades físicas diárias, promovendo o sedentarismo e aumentando o risco de doenças associadas à inatividade. O exercício físico, segundo Johnston (2022), estimula adaptações celulares que fortalecem músculos, ossos e o sistema cardiovascular. Contudo, nas pessoas com hemofilia — distúrbio hereditário que provoca hemorragias musculares e articulares (Andery et al., 2012) — a prática física requer cuidados específicos. A restrição excessiva das atividades, conforme Jones (2004), compromete o desenvolvimento motor e social, sendo fundamental promover a inclusão e a orientação adequada sobre exercícios seguros. Persistem, porém, lacunas no conhecimento da sociedade e na formação dos docentes e técnicos desportivos para integrar pessoas com hemofilia. No envelhecimento, a atividade física continua essencial, pois previne a perda de autonomia, melhora a capacidade funcional e retarda a dependência (Lopes, 2008).
— Conceitos: exercício físico, atividade física e desporto
A atividade física pode ser definida como qualquer movimento corporal produzido pela musculatura esquelética, portanto voluntário, que resulte num gasto energético acima dos níveis de repouso.
O desporto, por sua vez, implica regras, jogo, competição, mesmo que seja só de lazer ou recreação, com exceção daqueles desportos em que não se pratica atividade física, como o xadrez, o bridge, entre outros. Deste modo, todos os desportos implicam atividade física, mas nem toda a atividade física implica a prática de desporto. Muitas pessoas com hemofilia, ou por terem mobilidade reduzida, ou mesmo que não a tenham, receiam o exercício físico com medo de hemorragias. Entenda-se exercício físico como uma das formas de atividade física planeada, estruturada, repetitiva, que tem como objetivo o desenvolvimento da aptidão física, das habilidades motoras ou a reabilitação orgânico-funcional. Tal receio, contudo, é infundado, pois a movimentação constante pode sempre trazer benefícios, sendo essencial para a manutenção da dinâmica estrutural do corpo, devendo, cada pessoa, encontrar o seu próprio ritmo no exercício, conhecer e respeitar os seus limites, seguir o seu tratamento e superar os seus medos. Por exemplo, um passeio ao ar livre é considerado uma atividade física, enquanto uma caminhada orientada por um técnico de desporto é um exercício físico, dado que pressupõe um determinado planeamento para o alcance de um objetivo.
É, por isso, fundamental incentivar a prática da atividade física regular e orientada desde a infância, tendo em consideração as aptidões individuais, necessidades e interesses de cada um, a avaliação dos riscos e benefícios específicos dessas atividades.
— Benefícios da atividade física regular e orientada
O Dr. Barata Themudo da Fundação Portuguesa de Cardiologia, menciona que os benefícios da prática regular da atividade física são ao nível das doenças cardiovasculares (melhora a pressão arterial, previne as doenças das artérias coronárias, melhora o colesterol e outras gorduras do sangue), das doenças metabólicas (fundamental no controlo do peso e na prevenção da diabetes), do sistema locomotor (evita a osteoporose, músculos ficam mais fortes, postura mais correta e, previne e melhora as doenças crónicas das costas), da imunidade, da saúde psicológica (mais auto-estima e mais auto-confiança, combate e evita a ansiedade, descarrega o stress, previne e ajuda a tratar a depressão, melhora certas capacidades intelectuais, promove a socialização, o desenvolvimento infantil no crescimento bio-psico-social) e da qualidade de vida (aumenta a capacidade funcional para as tarefas da vida diária e gera sensação de bem-estar).
No que concerne à pessoa com hemofilia, S. Lobet (Lobet, 2018) reforça alguns benefícios já citados e menciona outros: melhoria do equilíbrio, coordenação e reflexos, que permite reduzir a incidência de entorses e hemorragias subjacentes, por exemplo; um maior conhecimento e posicionamento do corpo, permitindo prevenir lesões articulares e possível melhoria na compreensão dos limites da pessoa; uma musculatura mais desenvolvida e coordenada protege as articulações da pressão e traumatismos, o que pode reduzir a hemorragia articular e, por último, o desporto permite manter as articulações móveis, com movimentos de grande amplitude, o que pode promover a lubrificação da cartilagem e contrariar a rigidez.
Paula Romão e Silvina Pais (Romão & Pais, 1997) salientam que, mais importante do que a obtenção de resultados desportivos, deve-se promover uma prática regular e orientada, de forma a melhorar algumas funções vitais e consequentemente o retardar do envelhecimento precoce da estrutura osteoarticular e muscular, bem como do sistema cardiorrespiratório.
— Atividades Físicas e Desportivas Recomendáveis
A escolha de uma atividade física por pessoas com hemofilia deve ser feita com cuidado, considerando os riscos que cada modalidade apresenta. Segundo Zourikian et al. (2010), fatores como o contacto físico, a velocidade, a força de impacto, a altura e outras condições específicas podem aumentar o risco de hemorragias e lesões. Assim, desportos como hóquei, artes marciais ou snowboard exigem maior precaução, sobretudo em jovens com articulações-alvo ou artrite.
O desporto pode ser praticado em diferentes níveis de envolvimento, desde o lazer e manutenção até à competição e alto rendimento. Romão e Pais (1997) comparam esta estrutura a uma pirâmide, cuja base representa a prática generalizada, o setor intermédio corresponde à preparação desportiva e o topo à especialização dos atletas de elite.
De acordo com Teotónio Lima (1988), a formação desportiva desenvolve-se em três etapas: iniciação, orientação e especialização. A iniciação tem objetivos educativos e formativos e deve ocorrer na escola ou em clubes. A orientação mantém esse caráter, mas com foco na eficiência e na participação competitiva. Já a especialização procura elevar a qualidade do desempenho e superar resultados, sendo direcionada a contextos de competição. Em todas as etapas, é fundamental o desenvolvimento simultâneo das capacidades físicas e das técnicas específicas de cada modalidade.
Perante o exposto e ao analisar as diversas tabelas publicadas ao longo dos últimos anos no que concerne à correlação das atividades físicas e desportivas com o nível de risco hemorrágico associado, a elaborada por Sèbastien Lobet (2018, pp.18-19) permite uma análise mais exaustiva sobre cada um e sobre os níveis de desenvolvimento desportivo descritos anteriormente.
Quadro – Desportos e atividades físicas e riscos hemorrágicos associados
— A Natação
Mesmo com a existência de várias modalidades adequadas, diversos estudos indicam que a natação é o desporto mais recomendado para pessoas com hemofilia. De acordo com a National Hemophilia Foundation (Playing it Safe), trata-se de um desporto de baixo impacto, que favorece o fortalecimento muscular e o desenvolvimento do sistema cardiovascular. Kurme et al. (2004) destacam que a flutuabilidade da água reduz a gravidade e a vibração, aliviando a tensão sobre músculos e articulações. A água até ao nível do pescoço diminui em cerca de 90% o peso corporal, protegendo músculos e articulações e reduzindo o impacto nas mesmas. Além disso, a resistência da água permite um esforço físico controlado sem causar danos. A prática regular e orientada da natação proporciona fortalecimento músculo-esquelético, melhoria cardiorrespiratória, maior estabilidade emocional, melhoria da condição física, aumento da confiança e autoestima, bem como momentos de lazer e bem-estar.
A Federação Portuguesa de Natação identifica sete modalidades: natação pura, polo aquático, natação artística, masters, natação adaptada, águas abertas e saltos. Contudo, os estudos citados referem-se apenas à natação pura, já que modalidades como o polo aquático apresentam elevado risco hemorrágico devido ao contacto físico.
Na natação pura, o domínio técnico correto é essencial para prevenir lesões por stress articular. As lesões geralmente resultam de treino excessivo ou execução incorreta das técnicas, e os nadadores podem desenvolver excessiva flexibilidade nos ombros. A aprendizagem da natação inicia-se pela adaptação ao meio aquático (AMA) — imersão, respiração, equilíbrio, propulsão e salto — antes do ensino dos estilos (livre, costas, bruços e mariposa).
Os principais riscos da prática estão relacionados com escorregadelas nas áreas molhadas e colisões acidentais entre nadadores. Saltos e viragens são possíveis desde que haja técnica adequada e respeito pela profundidade da piscina.
De forma geral, a natação regular contribui para reduzir as crises hemorrágicas e melhorar a qualidade de vida das pessoas com hemofilia. Como afirma Jones (2004, p.9), “Nenhuma criança deverá chegar à adolescência sem ser capaz de nadar.”
— Recomendações - Antes e Após a Prática Desportiva
Antes de iniciar qualquer prática desportiva, a pessoa com hemofilia deve consultar o seu médico para assegurar que reúne as condições de saúde necessárias. O planeamento das sessões deve considerar fatores como: o tipo de exercício adequado à condição do praticante, a existência de hemorragias recentes, articulações-alvo ou danos articulares, a presença de dor em repouso ou durante o movimento, a dificuldade em realizar determinadas tarefas e o nível de consciência corporal na execução dos exercícios.
É fundamental manter uma comunicação constante entre o técnico desportivo e o praticante, de modo a avaliar o risco das atividades e prevenir hemorragias.
Os exercícios de aquecimento e alongamento são essenciais antes e depois do treino. De acordo com Sebastién Lobet (2018), iniciar o exercício sem aquecimento é uma das principais causas de lesões e hemorragias em jovens com hemofilia. O aquecimento deve ser feito de forma gradual, aumentando a temperatura corporal, promovendo a circulação sanguínea, a elasticidade muscular e prevenindo contraturas e entorses.
Após o exercício, é igualmente importante realizar o arrefecimento corporal, com alongamentos lentos e suaves, mantendo cada posição por pelo menos 30 segundos. Devem ser trabalhados especialmente os músculos e articulações mais solicitados: ombros, peitorais, pulsos, adutores, quadríceps, joelhos, bíceps, pescoço, antebraço, isquiotibiais, tornozelos, gémeos, tríceps, região lombar e glúteos.
Por fim, mesmo com uma execução correta, os exercícios não dispensam a supervisão técnica. A prescrição deve ser individualizada e cuidadosa, tendo em conta as particularidades e limitações de cada pessoa. Assim, o acompanhamento de profissionais especializados é indispensável para garantir uma prática desportiva segura e benéfica para quem tem hemofilia.
Ser desportista é uma opção; ser ativo é uma necessidade para a pessoa com hemofilia!
Paula Alves
(Coordenadora do Departamento de Desporto da APH)
